D. Pedro I, o imperador dos extremos
Eu estava em visita turística a algumas
fazendas do Vale do Café, no Estado do Rio de Janeiro; todas elas, antigas,
circunspectas, sábias e austeras, mas bonitas e cheias de história dos tempos
dos barões; em uma delas havia um pátio na frente do casario onde velhas
mangueiras, cheias de musgo sombreavam o quintal dando um ótimo frescor. Uns
bancos toscos, feitos de tábuas convidavam para um descanso aproveitando a
sombra daquelas gigantescas e centenárias árvores.
Sentei-me! ao meu lado estava um senhor já bem
entrado na terceira idade; cumprimentei-o e me apresentei... para quebrar o
gelo começamos a conversar; ele disse chamar-se Casimiro e morar em uma cidade
do interior de Minas. Por um sinal identificou-se como maçom e aí nossa
conversa passou a ter uma intimidade maior e, não sei porque motivo, caiu no
assunto da independência do Brasil.
Casimiro era bastante culto e em pouco tempo
tornou-se um excelente professor de história. Lá pelas tantas perguntei:
― Essa
época de transição entre o domínio português e a independência foi muito
traumática para os brasileiros, principalmente os agricultores?
― Oh.
Sim, ― respondeu Casimiro ― A luta pela emancipação política e administrativa do
Brasil foi um movimento bem característico, mas de profundo significado para a
economia do novo país. Foi similar a outros movimentos separatistas em vários
países. Os primeiros tempos sempre são muito difíceis.
Pedi
ao velho que falasse sobre a independência. Ele não se fez de rogado
recostando-se no banco suspirou... depois, olhando para o céu, prosseguiu
explicando:
―
Por influência de algumas correntes “pensantes” e provenientes da Europa, os
axiomas liberais foram entrando no Brasil e “fazendo a cabeça” dos colonos. A
independência dos Estados Unidos e a Revolução francesa, por exemplo, tiveram
ambas, no final do século XVIII, profundo alcance e significado nesse processo
de independência das nações americanas.
Concordei,
dizendo:
―
Foram os movimentos iluministas, justamente, os que mais contribuíram para
fomentar esse “gosto” pela liberdade.
― É
verdade ― redarguiu Casimiro. ― O iluminismo, foi a filosofia que caracterizou
mais tarde o liberalismo; ela ganhou o Novo Mundo, servindo de inspiração a
algumas lutas internas e libertárias; no Brasil ele motivou a Inconfidência
Mineira e a Conjuração Baiana ou Revolta dos Alfaiates, entre outras
manifestações.
Procurei
mostrar ao meu amigo que eu também conhecia um pouco de história:
― É
por aí! A Bahia, Pernambuco, Minas Gerais, todos esses estados sofriam grande
influência liberal, mesmo no finzinho do século XVIII, mas de forma um pouco
diferente: ― Em Minas a conjuração era intelectual, mas na Bahia o movimento
foi por inteiro popular, realizado pela classe menos favorecida.
Casemiro
concordou:
― É
isso! Alfaiates, pequenos comerciantes e gente do povo. O iluminismo, porém,
sempre foi uma filosofia intelectualizada, elitista e restrita a uma minoria de
pessoas cultas e instruídas. Chegou a dar nome a um período histórico na
Europa! Sem sombra de dúvidas suas ideias difundiram-se atingindo até mesmo a
corte e alguns soberanos, chamados déspotas esclarecidos, do Velho Continente.
Filósofos, como John Locke, Emanuel Kant, Montesquieu, Voltaire, Benjamin
Franklin, Benjamin Constant, Jean-Jaques Rousseau, Diderot, Madame de Stael e
outros mais, engrossaram as fileiras desse movimento intelectual.
O
velho, realmente conhecia o assunto. Por qualquer meandro que eu enveredasse,
ele respondia com segurança e juízo! Aproveitei para expressar a minha
admiração:
―
Caramba! Você é bamba mesmo em história, rapaz!
Ele
pigarreou, sorriu meio sem jeito e continuou sua explanação:
― Os
acontecimentos que culminaram na Independência do Brasil se precipitaram quando
Napoleão, na sua ânsia megalômana de açambarcar o mundo, exigiu o fechamento
dos portos portugueses à Inglaterra. Não sendo atendido pelo regente, invadiu o
pequeno país ibérico fazendo com que a rainha, o príncipe regente, toda a
família real e boa parte da corte, debandassem rumo às terras da colônia. E no início
do século XIX aportaram aqui, no Brasil, e estabeleceram o governo português a
partir da cidade do Rio de Janeiro.
―
Para a colônia, abandonada pela metrópole por séculos ― prosseguiu meu amigo ―,
esta vinda foi de vital importância; foram necessárias muitas mudanças
estruturais, econômicas, sociais e culturais, para suprir as carências
organizacionais do Brasil, que se mostrava bastante deficiente à época, e
torná-lo capaz de receber a nobreza europeia que se transferia para a América.
A rainha, D. Maria I, no final do século XVIII, revogara vários decretos do
Marques de Pombal, um grande estadista e déspota esclarecido; principalmente um
deles, que permitia a industrialização da colônia autorizando-a a construir
fábricas que pudessem prover a terra. O Brasil que, através do ministro
português havia alcançado certo status, de repente viu-se pela vontade da
rainha “a ver navios”, isto é, suas indústrias foram imediatamente fechadas.
Não
pude deixar de comentar:
―
Acho que no âmbito intelectual essa reforma trazida pela mudança da corte para
as terras brasileiras era extremamente necessária; mesmo porque a ignorância
que grassava na colônia abandonada, sem escolas ou universidades alastrava-se
sofregamente no meio popular. Havia teorias em acordo com as ideias liberais
que preconizavam a liberdade do pensamento e da expressão, mas eram apenas para
uma pequenina elite colonial ou para os filhos dela que completavam sua
educação na Europa; ou então para os estrangeiros que por aqui aportavam e não
possuíam compromissos com a metrópole.
Casimiro
fez com o dedo polegar um sinal afirmativo e acrescentou:
― Na
época essas novas teorias eram postulados que incitavam os adeptos a procurar
ideias que pudessem revelar uma verdade, mesmo que esta fosse contrária aos
dogmas da igreja; ou então às autoridades que guardavam seu conhecimento nos
nichos ocultos do saber vigente. O liberalismo valoriza a tolerância e acredita
no diálogo como meio para se chegar à tão desejada luz da ciência política e
social. Talvez por isso o príncipe D. João, que era um estadista de visão,
reativou a industrialização anulando o decreto real de sua mãe e criou a
primeira universidade brasileira.
Voltei
a comentar:
―
Tenho a impressão que D. João sabia que o novo potencial mundial viria do Novo
Mundo. A independência dos Estados Unidos fez com que todos os olhares da época
se voltassem, para a América.
O
velho sorriu concordando e continuou sua narrativa:
― É
verdade, tanto que em 1815, após a prisão de Napoleão, e precisamente no
aniversário da ‘Rainha Louca’ D. Maria I, o Príncipe elevou o Brasil a reino
através de carta régia assinada no Paço Imperial do Rio de Janeiro, cujos
principais artigos estabeleciam o seguinte:
Fez
uma pausa e rememorou os fatos listando-os:
― Primeiro: Preconizava que os
reinos de Portugal, Algarves e Brasil formassem um único bloco sobre a
denominação de “Reino Unido de Portugal, do Brasil e de Algarves”.
― Segundo: exigia que os títulos
inerentes à Coroa de Portugal, e dos quais até agora D. João, herdeiro do trono
português usara, fossem substituídos em todos os Diplomas, Cartas de Lei,
Alvarás, Provisões e Atos Públicos pelo novo título de “Príncipe Regente do
Reino Unido de Portugal, do Brasil e de Algarves, d’Aquém e d´Além Mar, em
África de Guiné e da Etiópia, Pérsia e Índia...”
―
Nesse período em que se tornou a sede do governo português ― prosseguiu
Casimiro ―, o Brasil prosperou a olhos vistos. Suas grandes riquezas naturais
motivaram um vivo e rápido progresso; a chegada da família imperial trouxe uma
promoção crescente e vertiginosa dos valores da ex-colônia entre as outras
nações, contrastando com uma progressiva estagnação e, até mesmo, um declínio
de Portugal. Mas a metrópole não estava nada satisfeita.
Atalhei
dizendo:
― Se
a sede do governo português permanecesse no Brasil, talvez nossa posição
perante o mundo fosse diferente hoje em dia. Acho que essa era a intenção de D.
João, mas ele sofreu pressão demasiada para retornar.
Casimiro
sorriu, aprovou e concluiu:
―
Exatamente. A volta de D. João a Lisboa, em fevereiro de 1821, foi fator de
grande relevância para a consolidação da Independência. A essa altura ele já
era D. João VI desde a morte de sua mãe em março de 1816, assumindo assim seu
posto d’além mar como rei de Portugal. Veja que ele passou quase cinco anos
governando Portugal daqui do Brasil. Nota-se que o rei não queria voltar à sua
terra. Esse fato deflagrou uma política de antipatia e profunda aversão por
parte da corte portuguesa; puro ciúme a todas as aquisições, políticas e
materiais, obtidas pelo Brasil.
Eu
estava me agradando muito daquela conversa sobre a história do Brasil. Casimiro
explicava de uma maneira bastante didática e, a cada momento, surpreendia-me
mais.
― A
permanência do príncipe D. Pedro, herdeiro do trono português, no Rio de
Janeiro, decidida no célebre “Dia do Fico”, frustrou a Assembleia das Cortes;
logicamente ela esperava o regresso de toda a família real ― e o consequente
abandono das terras americanas ao Governo das Juntas Provinciais. ― Este era o
assunto que fervia na corte, ou seja: o Brasil volveria à condição colonial e
ficaria “ao Deus dará”, abandonado pelos presunçosos portugueses que não se
conciliavam com as conquistas brasileiras e exigiam o retorno imediato das
terras americanas à condição anterior de simples possessão portuguesa.
― Da
mesma forma que influenciara na Independência Americana e na Revolução
Francesa, ― prosseguiu o velho ―, a maçonaria com suas ideias baseadas na
legenda “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” instigava seus membros, quase
todos eles adeptos do Iluminismo, a pugnarem pela independência em seus países,
justamente por se considerarem “homens livres e de bons costumes”.
Interrompi
Casimiro para dizer:
― Como
maçom já ouvi falar dessa participação, mas gostaria que você esclarecesse.
―
Chego lá ― afirmou o velho. ― A
maçonaria atuou em quase todos os movimentos americanos, inclusive nos Estados
Unidos onde os principais líderes eram maçons; George Washington, em alguns
quadros alusivos à independência, aparece paramentado com o avental da Ordem e
suas vestes maçônicas. Benjamin Franklin, Thomas Jefferson e outros
“assinantes” da “Magna Carta”, eram maçons declarados. Hoje existem filmes e
livros que falam abertamente sobre o assunto.
― Na
América Latina, Benito Suarez no México, Simon Bolívar na Venezuela, Colômbia e
Equador, San Martin na Argentina, Bolívia e Peru, Bernardo O’Higgins no Chile,
todos eles eram maçons assumidos.
O
velho apertou os olhos para se recordar melhor:
―
Foi justamente por isso que maçons brasileiros proeminentes como Gonçalves
Ledo, José Bonifácio, Frei Francisco Sampaio, Cônego Januário, Muniz Barreto,
José Clemente Pereira e outros membros da Ordem, iniciaram uma série de
trabalhos e manifestos a favor da independência, trabalhando à socapa, porém
influenciando ideias. Isso levou o movimento ao ponto de procederem à
iniciação, na Maçonaria, do Príncipe Regente D. Pedro, que se tornou membro
através das mãos de José Bonifácio de Andrada; este era o Grão-Mestre do Grande
Oriente Brasílico, que era a potência maçônica vigente no Brasil, e colocou D.
Pedro em seu próprio cargo, tornando-o Grão-Mestre da maçonaria.
Cassimiro
prosseguiu olhando para mim:
― Talvez
você não saiba, mas é de conhecimento notório no meio maçônico que Gonçalves
Ledo, Primeiro Vigilante da Loja Comércio e Artes, substituindo o Venerável
Mestre, José Bonifácio que se achava ausente, proclamou a Independência do
Brasil dentro de sua Loja Maçônica; isso se deu no dia 20 de agosto de 1822,
data que ficou instituída nacionalmente nos dias atuais como o “Dia do Maçom”,
simbolizando a luta da Ordem em favor da Independência. Do Grupo de Gonçalves
Ledo, entre tantos, faziam parte, destacadamente, o Cônego Januário da Cunha
Barbosa, José Clemente Pereira, Frei Francisco de Santa Teresa Sampaio, José
Domingos Ataíde, o coronel Francisco Maria Gordilho de Barbuda, Muniz Barreto e
o Capitão-mor José Joaquim da Rocha.
Casimiro
me olhava. Seus olhos brilhavam demonstrando entusiasmo. Prosseguiu relatando
os acontecimentos sobre a independência.
―
Domingos Alves Branco Muniz Barreto, em sessão da loja “Comércio e Artes”
propôs que se desse ao príncipe um título conferido pelo povo: “Protetor e
Defensor Perpétuo do Brasil”; a ideia foi aprovada por todos. D. Pedro,
entretanto, disse que aceitava o título, mas sem o “Protetor”, apenas como
“Defensor”. O fato é que essas pressões e manobras exercidas sobre o regente
culminaram com o famoso Grito do Ipiranga: “Independência ou Morte”, em 7 de
setembro de 1822 e que criou o Império do Brasil.
Casimiro
sorriu abanando a cabeça. Depois suspirando, prosseguiu:
― A
tão sonhada independência, entretanto, fez surgirem muitas diferenças e
proliferarem as opiniões: Havia os que defendiam um poder centralizado e forte
e, entre eles estava o novo Imperador do Brasil que adotara o título de D.
Pedro I. Os liberais colocavam-se favoráveis a um poder menos absoluto e os
democratas pelejavam por uma igualdade social.
Casimiro
novamente balançou a fronte em gesto negativo; exprimia profunda desolação:
― D.
Pedro, autocrático e déspota por natureza, advogado extremado do absolutismo e
totalmente refratário a qualquer demonstração liberal ou democrática, mostrou
desde o início de seu governo um pulso tirânico e violento. Era tinhoso,
teimoso e autoritário o monarca brasileiro com sotaque português.
Não
pude deixar de rir com o comentário:
―
Tudo o que nos chega do imperador ― falei ― são características extremamente
pessoais. Individualista, preconceituoso, arrogante... será que ele era mesmo
assim?
Casimiro
sorriu satisfeito com o comentário:
―
Pelo menos não era de meias palavras. Ou gostava ou não gostava! Logo que se viu com o poder nas mãos, apenas
dezessete dias após a proclamação, tratou de fechar a maçonaria e proibir que a
Ordem voltasse a se reunir, esquecendo-se de sua afiliação à fraternidade e do
alto cargo que desempenhava nela. Afinal ele sabia muito bem como a Maçonaria
formava opiniões.
O
velho maçom apertou os olhinhos reforçando as rugas de seu rosto e comentou
sorridente:
―
Tal fato lembra-nos o velho e oportuno adágio “Adora quod incendisti, incende quod adorasti...” atribuído a S. Gregório de Tours. D. Pedro torna a
maçonaria proscrita e se enche de amores pelo partido português! Em maio de
1823 foi montada a Assembleia Constituinte para suprir o país emergente de uma
carta constitutiva; era uma condição efetiva para que o Brasil se revelasse ao
mundo como nação soberana e independente; a primeira vítima do monarca foi José
Bonifácio. Apesar de sua formação iluminista e sua condição de ministro, além
de ex-Grão-Mestre da Ordem Maçônica, D. Pedro transformou-o em mera figura
decorativa do governo, impotente e impossibilitado de influir na fortíssima
personalidade do Imperador. O primeiro ato imperial logo que conseguiu a consolidação
da independência, foi justamente afastar do poder os irmãos Andrada, obstáculos
aos seus propósitos absolutistas, exonerando-os de seus cargos governamentais.
Isso aconteceu em julho de 1823; José Bonifácio e Martim Francisco deixaram o
governo! Mas os irmãos possuíam também uma personalidade forte e, por isso,
assumiram uma oposição firme ao lado do irmão Antônio Carlos, que seria eleito
deputado constituinte; Juntos eles pelejavam contra os excessos do imperador
por intermédio dos jornais “A sentinela da Liberdade” e “O Tamoio”, ambos de
sua propriedade.
Nova
pausa para reunir os pensamentos. Casimiro prosseguiu:
―
Rompidas definitivamente as relações com Portugal passava a ser importantíssimo
organizar os fundamentos para instalação da assembleia constituinte; o
imperador queria dar um cunho pessoal ao evento, por isso ventilava-se a questão dos direcionamentos
para recrutar o eleitorado que deveria votar. Estabeleceram-se então os
critérios para a escolha dos deputados que cumpririam a importante missão de
dotar o país de uma lei para estabelecer diretrizes.
O
velho suspirou e esclareceu:
― O
anteprojeto, organizado de forma a ser o esboço da Constituição, depois de
demoradas sessões para aprovação foi apresentado para discussão na Assembleia,
somente em setembro de 1823. Sabe-se que continha 272 artigos, inspirados,
parcialmente, nos ensinamentos dos filósofos iluministas; entre seus
principais destaques, estavam o princípio da soberania nacional e o liberalismo
econômico. Por precaução, rejeitou-se qualquer posição referente à democracia;
assim ficou definitivamente afastada qualquer participação popular na vida
política do país até a proclamação da república.
Eu
escutava atentamente as explicações do meu novo amigo. Pensei comigo: Puxa, encontrei
uma verdadeira enciclopédia... Sorte a minha...
Deixei
Casimiro prosseguir com sua explanação:
― O
anteprojeto apresentava, também, um forte caráter anticolonialista. Era, sem
sombra de dúvida de cunho xenófobo, principalmente contra os portugueses. Essa
“lusofobia”, entretanto, tinha fundamentos: no Pará, onde houve resistência
portuguesa, na Bahia e na Província Cisplatina, território que não aceitava a
anexação brasileira, as ameaças de retorno aos tempos coloniais ainda
perduravam. O Partido Português continuava em evidência, ávido para retornar ao
poder e muito atuante. Nas ruas e nas praças, brasileiros e portugueses, por
qualquer motivo enfrentavam-se chegando, na maioria das vezes, às vias de fato.
Na Bahia a independência só se consolidou a 2 de julho de 1823, quando as
tropas do general português Madeira de Melo retiraram-se após a derrota na
batalha de Pirajá; foi também importante nesse episódio a participação pelo
mar, através da “frota” de saveiros comandada por João das Botas, que fustigou
implacavelmente os portugueses até a chegada do almirante Cochrane, comandante
em chefe da armada brasileira.
Casimiro
fez uma pausa antes de prosseguir. Depois continuou:
― É
claro que o Brasil estava na berlinda perante o mundo, que aguardava com ansiedade
uma carta constitutiva que fornecesse ao país a esperada autonomia. Por isso
mesmo, é lógico, o anteprojeto foi alvo de duras críticas principalmente por
parte do governo. A obstinação de seus idealizadores em “minimizar” o poder
imperial desagradou D. Pedro I que, imediatamente, posicionou-se contra a Assembleia.
Desde a queda dos ‘Andradas’ o partido português conquistava mais espaço e
fazia maiores progressos. Esse segmento de âmbito ultrarreacionário achegava-se
cada vez mais ao Imperador, defendendo abertamente o poder absoluto ― e nisso
foi plenamente correspondido pelo monarca!
O velho olhou para o céu e coçou a cabeça:
― A
hostilidade étnica entre brasileiros e portugueses aumentava a olhos vistos dia
após dia. Isso desembocou inevitavelmente no episódio que deu origem à ‘Noite
da Agonia’, de 11 para 12 de novembro de 1823. Essa passagem teve lugar durante
uma sessão muito extensa da primeira assembleia constituinte
do Brasil, onde os membros
aventavam a conjectura da retirada ou da manutenção dos poderes do imperador. Dom Pedro I, tomando
conhecimento do debate, enviou aos parlamentares durante a madrugada, por
intermédio do brigadeiro José Manoel de Moraes, um decreto que dissolveu a
Assembleia; a missiva ainda prometia para breve a elaboração de uma nova carta
constitutiva nos moldes requeridos. Requeridos por ele, é lógico.
―
Tal ato causou uma grande comoção e mal-estar entre os deputados constituintes,
que passaram então a manifestar seus protestos em total desacordo com aquela
medida unilateral em plenário A culminância se
deu com a prisão e deportação dos irmãos Andrada ― José Bonifácio, Martim
Francisco e Antônio Carlos.
Casimiro
parou um pouquinho e com voz divertida comentou:
―
Ali chegou ao fim o breve período em que a aristocracia brasileira esteve no
poder. Em seu lugar, D. Pedro I estabeleceu o absolutismo apoiado pelo “partido
português”!
Completei:
―
Acho que a aristocracia brasileira nunca esteve no poder, pelo menos nessa
época. Às vezes tenho a impressão de que se a independência fosse feita por um
brasileiro teríamos conseguido melhor sorte no desenvolvimento do país. Não
vejo D. Pedro I com o menor cacoete de administrador...
―
Seu comentário tem muita veracidade ― concordou o velho. ― Mas a dissolução da
Constituinte acarretou grande descontentamento. E para minimizar o acontecido,
D. Pedro nomeou rapidamente uma comissão de dez membros ― o Conselho de Estado
― com objetivo de redigir um texto constitucional. No dia 25 de março de 1824,
uma carta constituinte foi outorgada à nação. Essa foi a primeira constituição
do Brasil.
Ele
fez uma pausa comprida, suspirou, coçou o queixo... depois explicou:
―
Veja bem, o conteúdo redacional do novo texto constitucional estava assentado,
em inúmeros pontos do anteprojeto preparado por Antônio Carlos de Andrada. A
grande inovação foi a adoção de um quarto poder, chamado de ‘moderador’, que se
juntou à já consagrada fórmula tripartite ― executivo, legislativo e
judiciário. Essa constituição, apesar de outorgada, trouxe credibilidade e
autoridade ao império; entretanto havia algumas particularidades: a Carta de
1824 assumia, por exemplo, o catolicismo como religião oficial. Isso modificou
a relação entre a Igreja e o Estado, que passou a ser regulada através do
regime chamado padroado; nele os clérigos recebiam salário pago pelas
autoridades imperiais, fato que os equiparava a simples funcionários públicos.
Além disso, passou a ser prerrogativa do imperador a nomeação de sacerdotes aos
vários cargos eclesiásticos, o que suscitava influência política, e ainda dar
aquiescência aos decretos ou bulas papais, ou melhor, às disposições oriundas
da Santa Sé.
Casimiro
ia repassando de maneira bastante satisfatória a história do Primeiro Reinado;
falava de forma explícita, explicativa, apesar de eu ter notado que não havia
nele qualquer pretensão de se passar por historiador. Confesso que nunca tivera
a oportunidade de me aprofundar tanto anteriormente na história da
independência de meu país. Isso fazia com que eu prestasse agora muita atenção
às explicações de Casimiro a quem à essa altura, sem qualquer favor, eu já
considerava um mestre. A história ia fluindo naturalmente dos lábios do ancião:
― O
absolutismo imposto por D. Pedro I, um déspota assumido ― afirmou meu
interlocutor ―, gerou enorme insatisfação e constrangimento não apenas na
nobreza, mas no povo em geral. No nordeste, a contrariedade foi particularmente
demonstrada após a nomeação dos presidentes de províncias, em fevereiro de
1824. A aristocracia rural nordestina, composta principalmente de usineiros,
não concordou em ver-se alijada de um processo de autonomia administrativa,
esperança acalentada durante muito tempo.
Ele
fez uma espécie de adendo explicativo:
―
Não há dúvidas quanto à profunda modificação imposta pelo novo modelo econômico
do Império: ― De fato, a integração territorial e monetária do país era,
extremamente, precária.
Solicitei
ao velho que explanasse melhor sua opinião sobre o assunto. Ele suspirou e
esclareceu com mais minúcias:
―
Note bem, a ausência de união nacional explicava-se pela conservação do caráter
colonialista da economia brasileira. Cada província dependia muito mais de suas
exportações do que de um intercâmbio entre elas, ou melhor, não existia
praticamente nenhum mercado interno de consumo. No plano político, trocou-se
Lisboa pelo Rio de Janeiro, onde um imperador português, absolutista e meio
louco, tomava sozinho todas as decisões importantes sem levar em conta os
anseios provincianos. Para o nordeste, a independência não havia contribuído
com nada ou alterado coisa alguma; substituir Lisboa pelo Rio não resolvia as
aspirações de participação no governo central. E os nordestinos não enxergavam
nisso qualquer vantagem: muito pelo contrário, só pressentiam prejuízos.
Anotei:
― Já
naquela época o nordeste começou a ser abandonado pelas autoridades, não acha?
Esse fato perdura até hoje. O nordeste continua abandonado, carente, às vezes
miserável e sofrendo imensos preconceitos, sem falar, é claro, nos prejuízos
que tomou durante tantos anos. Você não acha que capital do país no Rio de
Janeiro centralizou muito o poder?
Casimiro
assentiu com a cabeça:
―
Foi justamente por isso que em 1824 e 1825, deflagrou uma rebelião em
Pernambuco; era a Confederação do Equador, de funestas consequências
econômicas, sociais e morais para a monarquia e que culminou com o fuzilamento
de Frei Caneca, um dos líderes, junto com mais outros dezesseis conjurados;
este levante, em conjunto com a questão cisplatina, acarretou um enorme
prejuízo às finanças brasileiras, inclusive ferindo profundamente o prestígio
do novo governo que surgia.
― Na
esfera política, a independência não produziu qualquer mudança bem-sucedida ou
produtiva; o modelo persistia na velha fórmula colonialista e escravocrata. Era
evidente ― como é até hoje ― que o equilíbrio econômico-financeiro do Primeiro
Reinado estava atrelado a uma boa performance das exportações. ― constatou o
ancião.
― E
justamente por esse motivo ― continuou ―, que a primeira metade do século XIX
foi decisiva para a economia do império. O açúcar brasileiro, na época a nossa
mais importante fonte de exportação, sofria uma vigorosa concorrência de Cuba e
Jamaica, sem contar com a pressão exercida pelo açúcar de beterraba da Europa.
Outras mercadorias, como por exemplo, o algodão e o arroz disputavam o mercado
internacional com os Estados Unidos que já penetrava firme na produção mundial
estabelecendo-se como grande nação exportadora. O tráfico negreiro, devido à
vigilância inglesa sobre os navios que transportavam escravos, retraiu-se
influindo deveras na produção brasileira, principalmente na lavoura do fumo e
do açúcar, produtos básicos das exportações. A Argentina, na época “Províncias
Unidas do Rio da Prata”, incrementou o crescimento da sua pecuária bovina e
acarretou queda acentuada no comércio de couro do Brasil, fazendo os preços
despencar prejudicando a arrecadação imperial.
Uma
pausa para espremer as reminiscências e relembrar os fatos. Depois ele
prosseguiu:
― O
arrocho financeiro atingiu o clímax com a eclosão da ‘Guerra Cisplatina’, em
1825. A revolta teve início quando Lavalleja, um líder uruguaio, invadiu a
Província Cisplatina com sua tropa apoiada pelos habitantes da região e
decretou a sua incorporação à República das Províncias Unidas do Rio da Prata.
O Brasil replicou imediatamente declarando guerra à Argentina. O conflito
continuou até 1828, quando o Brasil e a Argentina, de mútuo acordo,
reconheceram a independência da Cisplatina, que passou a se chamar República
Oriental do Uruguai. D. João VI morreu
em 1826, por conseguinte, um ano após o início da ‘Guerra Cisplatina’; e aí, o
velho fantasma de se retornar à condição de colônia voltou a assombrar os
brasileiros; é verdade que D. Pedro havia renunciado ao trono português em
favor de sua filha Maria da Glória, mas, mesmo assim, o medo de uma volta ao
domínio português, ameaçava a estabilidade do Império. Em 1828, justamente na
ocasião em que a Guerra Cisplatina chegava ao fim, D. Miguel, irmão de D.
Pedro, assumiu o trono português através de um golpe de estado. A possibilidade
de D. Pedro enviar tropas brasileiras a Portugal para restabelecer o trono
depondo o usurpador e reempossando sua filha trouxe novas inquietações, pois
essa interferência poderia restabelecer a união das duas monarquias.
Casimiro
deu um suspiro e prosseguiu:
― D.
Pedro não era popular. Aliás, ele a cada dia se impopularizava mais, e isso se
revelou no recrudescimento da oposição. Para apoiar o imperador e sustentar a
sua política absolutista, os membros do ‘partido português’ constituíram uma
sociedade denominada ‘Colunas do Trono’. A oposição liberal respondeu com a
criação da ‘Jardineira’ ou ‘Carpinteiros de São José’ ― possivelmente as duas
organizações eram amparadas pela maçonaria que apesar de ter sido proscrita
pelo monarca continuava atuante e influindo nas decisões, como sempre, aliás.
― A situação chegou a limites insustentáveis para o governo. As
queixas partiam de todos os setores da sociedade, menos do Partido Português.
Tentando amenizar os fortes movimentos de oposição que cresciam nos principais
espaços do debate político, Dom Pedro I optou por empreender uma ‘turnê’
através de várias províncias; resolveu partir acompanhado de sua esposa, D.
Amélia de Leuchtenberg, a imperatriz de personalidade forte e marcante; para
tal organizou uma bela e pomposa comitiva cuja missão principal era reverter o
deteriorado quadro de insatisfação extrema nas províncias, gerado pela política
praticada através governo imperial. O cortejo seguiu até a cidade de Ouro
Preto, em Minas Gerais, o primeiro ponto programado para parada do
Imperador.
Casimiro fez um comentário à parte:
― Na época, os jornais levantavam suspeita do envolvimento de D.
Pedro I no assassinato do jornalista Líbero Badaró. Badaró era um oposicionista
contumaz e escrevia artigos bombásticos denunciando os desmandos do governo
imperial e também a falta de experiência, ou melhor, a imperícia do Imperador
no trato com a coisa pública. Resultado: foi eliminado! A investigação sobre
sua morte, muito mal averiguada, diga-se de passagem, reforçava as suspeitas da
participação governamental na tragédia.
O mestre prosseguiu:
Por essa razão, ao chegar a Minas, o Imperador e a corte foram
recebidos por um protesto velado: os cidadãos cerravam as portas de suas casas
e revestiam suas janelas com tecido preto, simulando luto. Esse protesto em
repúdio ao assassinato do jornalista Líbero Badaró produziu em Dom Pedro I uma
profunda decepção e a vontade de não continuar a viagem, retornando, de
imediato, para o Rio de Janeiro.
― Os portugueses da capital, em compensação, resolveram preparar
uma festança para recepção do monarca. Na noite de 13 de março de 1831, os
brasileiros descontentes saíram às ruas xingando os portugueses com palavras
ofensivas e bradando vivas à liberdade e a constituição brasileira. O repúdio
acabou gerando um conflito a céu aberto entre portugueses e brasileiros; uma
verdadeira batalha campal: os mais diversos objetos foram lançados como
projéteis pelos grupos rivais, inclusive muitas garrafas. Esse foi o motivo
pelo qual o fatídico episódio acabou ganhando o nome de “Noite das Garrafadas”.
― Os conflitos ainda se prolongaram durante mais de quatro dias,
marcando com violência os últimos momentos que antecederam a abdicação de Dom
Pedro.
Eu sabia um pouquinho de história do Brasil e até me julgava bom,
porém, estava impressionado, pois o conhecimento de meu interlocutor era bem
maior do que o meu! Casimiro não titubeava e ia narrando os fatos históricos
com uma precisão como se estivesse estado ali presente! Ele sorriu para mim
como se estivesse lendo os meus pensamentos e continuou:
―
No dia 19 de março de 1831, instaurou-se um Ministério constituído por
brasileiros natos, porém desconhecidos. Com a
nova polarização que pretendia minimizar os efeitos que se alastravam por todo
o país, os ânimos se exaltaram de lado a lado. O "partido português",
em 4 de abril, lançou uma nova provocação, comemorando o aniversário de D.
Maria da Glória, filha de D. Pedro e herdeira legítima do trono português.
Novos conflitos eclodiram entre as facções contrárias. D. Pedro dissolveu o
ministério brasileiro e organizou outro, francamente absolutista, o célebre
‘Ministério dos Marqueses’ ou ‘Ministério dos Medalhões’.
―
Ocorreu então uma nova manifestação no Rio ― continuou o velho ― na qual se
reivindicava o retorno do ministério deposto. Apesar da insistência de setores
civis e militares para que D. Pedro acatasse, ele manteve-se irredutível. Essa
atitude do imperador determinou a passagem do General Francisco de Lima e
Silva, pai do futuro Duque de Caxias e importante chefe militar do Império,
para a oposição.
―
Com isso o imperador ficou completamente isolado e sem apoio. Não contava mais
sequer com as tropas para reprimir as manifestações. Já não restava alternativa
senão abdicar. E foi o que ele fez, em favor de seu filho D. Pedro de
Alcântara, que estava com, apenas, cinco anos de idade.
O
velho assumiu uma voz solene, como se narrasse um fato de extrema importância
para a história:
― No
dia 7 de abril de 1831, D. Pedro I deixou de ser imperador do Brasil e, em
seguida, abandonou o país com a família, embarcando para Portugal. Mas antes se
reconciliou com os Andradas, nomeando José Bonifácio como tutor de Pedro de
Alcântara!
Ai
eu acrescentei sorrindo:
― E
aí se acabou o reinado de D. Pedro I! Dizem que ele era farrista e mulherengo
ao extremo. É verdade ou existe muito exagero?
Casimiro
deu uma gostosa risada. Com a fisionomia satisfeita comentou:
― É
verdade! Como bom português ele era doido por uma mulata; e costumava sair
disfarçado à noite para se meter em tabernas, bebendo e participando de orgias.
Teve inúmeras amantes, o nosso monarca.
― A
mais conhecida é a Marquesa de Santos ― completei. Domitila era o seu primeiro
nome, se não me engano. Dizem que havia um túnel ligando a residência do
Imperador ao palácio da marquesa...
―
Não acredito ― atalhou Casimiro. ― Mas de qualquer forma o imperador era um
libertino. Com a marquesa D. Pedro teve uma filha, Isabel Maria, a duquesa de
Goiás. No início de seu casamento com Amélia de Leuchtemberg, ele queria que a
filha bastarda fosse morar em palácio, mas a imperatriz proibiu a sua presença.
D. Amélia também era geniosa e, com ela, D. Pedro não tinha vez. Mais tarde,
depois da abdicação, D. Amélia voltou atrás adotando a duquesa de Goiás e
tornou-a sua filha.
Uma
moça simpática acompanhada de um rapaz igualmente simpático aproximou-se de
nós.
―
Vamos vovô ― disse ela.
E
Casimiro acompanhou-a perdendo-se na distância e no tempo. Restou a mim
escrever nosso encontro da melhor forma possível para que ele não se se
desfizesse na fumaça daquilo que foi e que já passou.
Fergi
Cavalca